Friedman defende fim da petrodependência

Thomas Friedman: O que está a acontecer hoje no mundo árabe é a mãe de todos os toques a rebate. E o que diz a voz por trás do sino é claro como água: "EUA, vocês construíram a vossa casa no sopé de um vulcão. O vulcão está a lançar lava em todas as direcções e tudo indica que está prestes a explodir. Saiam daqui!" Neste caso, "saiam daqui" significa "ponham fim à vossa dependência do petróleo".

Duvido que alguém esteja a torcer mais que eu pela vitória dos movimentos democráticos no mundo árabe. Mas mesmo que as coisas corram bem, o percurso será longo e tortuoso. O melhor que podíamos fazer neste momento era lançar um imposto de 25 cêntimos (cerca de 20 cêntimos de euro), num processo faseado a começar com 5 cêntimos por mês em 2012 e usar este dinheiro para amortizar o défice.

Aprovar legislação que imponha um aumento futuro de combustíveis produz efeito de imediato, observa o economista de Princeton Alan Blinder. O efeito sobre o investimento e a aquisição de combustíveis é muito anterior ao aumento efectivo do preço. Com uma pequena taxa sobre a gasolina podemos reforçar a nossa segurança económica e estratégica, ajudar a vender mais carros eléctricos e contribuir activamente para a generalização dos valores democráticos no Médio Oriente, livres de preocupações quanto aos nossos interesses petrolíferos. Sim, teríamos de pagar mais pelos combustíveis - mas seja como for eles vão aumentar; o melhor é ficarmos com parte do aumento para nós.

Já estava na altura. Ao longo dos últimos 50 anos, os EUA (bem como a Europa e a Ásia) trataram o Médio Oriente como se não passasse de uma série gigantesca de bombas de gasolina: Arábia Saudita, Irão, Kuwait, Bahrein, Egipto, Líbia, Iraque, Emirados Árabes, e por aí fora. A nossa mensagem à região sempre foi a mesma: "O negócio é o seguinte: vocês mantêm as bombas a funcionar e os preços baixos e não precisam de se preocupar muito com os israelitas. Pelo que nos diz respeito, podem fazer o que vos apetecer. Podem privar os vossos povos de direitos civis, a corrupção é a que quiserem, a intolerância pregada nas mesquitas também, os vossos jornais podem atribuir ao Ocidente todos os projectos de conspiração que entenderem e as mulheres podem continuar analfabetas. Se quiserem também podem criar estados-providência sem capacidade de inovação e os vossos jovens não precisam de estudar. Desde que as bombas não parem de funcionar e vocês não se metam muito com os judeus, podem fazer tudo."

Foi esta atitude que permitiu que o mundo árabe se tivesse isolado do curso da história nos últimos 50 anos - ao longo dos quais foi governado pelos mesmos reis e ditadores. Pois bem, a história está de volta. A combinação da subida do preço dos alimentos com o desemprego em massa dos jovens e as redes sociais está a permitir que estes jovens se organizem contra os seus líderes e derrubem as barreiras do medo que mantinha estas cleptocracias.

Mas agora é melhor apertarmos os cintos de segurança. Não estamos a preparar-nos propriamente para um passeio, porque acabou de saltar a tampa a toda uma região com instituições frágeis, uma sociedade civil com pouco vigor e praticamente nenhuma tradição democrática ou cultura de inovação. O relatório das Nações Unidas para o Desenvolvimento Árabe de 2002 avisava quanto a tudo isto, embora a Liga Árabe se tenha assegurado de que este relatório era ignorado no mundo árabe e esquecido no Ocidente. No entanto, este documento - compilado por vários intelectuais árabes dirigidos por Nader Fergany, um especialista egípcio em estatística - foi profético. Merece ser relido à luz dos acontecimentos recentes para avaliarmos a dificuldade enfrentada pela transição democrática.

Segundo o relatório, o mundo árabe sofre com três graves défices - educacional, de liberdade e de independência das mulheres. Um resumo deste relatório no número do Outono de 2002 da "Middle East Quarterly" recordava os dados-chave: o PIB combinado de todo o mundo árabe era inferior ao de Espanha. Os gastos per capita com educação nos países árabes baixaram de 20% dos países industrializados nos anos 80 para 10% em meados dos anos 90. Se relacionarmos o número de artigos científicos com a população total, a média do mundo árabe por milhão de habitantes foi cerca de 2% da do mundo industrializado. Quando os dados foram reunidos, traduziam-se no mundo árabe 300 livros por ano, um 50 avos do que se traduz na Grécia. Em sete regiões do mundo, os países árabes obtiveram a classificação mais baixa da Freedom House no que dizia respeito a liberdade no fim dos anos 90. No início do século xxi havia no mundo árabe mais de 60 milhões de adultos analfabetos, sobretudo mulheres. Daqui a dez anos, o Iémen poderá ser o primeiro país do mundo a ficar sem água.

É esta a tão louvada "estabilidade" proporcionada por estes ditadores - a das sociedades paradas no tempo. O sucesso dos movimentos democráticos no Egipto e noutros países e a sua capacidade de se modernizarem seria excelente para eles, mas também para o resto do mundo. Temos de fazer o que for possível para os ajudar. Porém, ninguém deve ter ilusões sobre o regresso dos árabes à história. O processo será convulsivo. Vamos torcer por eles, sem nos intrometermos.

Artigo originalmente publicado no New York Times. Versão portuguesa publicada na edição de quinta-feira do i